Compreendendo a Lei da Ficha Limpa

Beatriz Maria do Nascimento Ladeira1

 

No 15º dia do mês de agosto de 2014, o jornal Estado de Minas noticiou, em sua segunda página, que o Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais barrou 16 candidatos por terem sido enquadrados na Lei da Ficha Limpa. Mas o que significa essa decisão da corte eleitoral mineira?

Para melhor compreensão da questão, apresentamos o entendimento de José Jairo Gomes, que nos ensina que, embora a regra geral seja a elegibilidade dos candidatos, há casos de impedimentos, impostos pela Constituição Federal ou por lei infraconstitucional, que podem restringir a possibilidade de candidatura a cargos políticos.

A Lei Complementar nº 135, de 2010, também chamada Lei da Ficha Limpa, é um exemplo de lei infraconstitucional que regulamenta restrições à elegibilidade. Ela foi fruto de um projeto de lei de iniciativa popular, encabeçado por entidades que fazem parte do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), e mobilizou vários setores da sociedade brasileira, entre eles, a Associação Brasileira de Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais (Abramppe), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), organizações não governamentais, sindicatos, associações e confederações de diversas categorias profissionais, além da Igreja católica. Foram obtidas mais de 1 milhão e 600 mil assinaturas em apoio.

De acordo com Marlon Jacinto Reis (2010), um dos coordenadores do projeto:

A coleta de assinaturas teve início em maio de 2008, após a aprovação da campanha pela unanimidade dos presentes à Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, uma das entidades integrantes do movimento. A partir daí, todas as demais organizações foram convidadas a refletir sobre o tema e difundi-lo entre suas bases de modo a alcançar-se a mobilização em rede necessária à geração da “energia política” da qual dependeria a conquista das 1,3 milhão de assinaturas necessárias à apresentação de um projeto de lei de iniciativa popular.

Segundo Graziela Tanaka (2011), coordenadora de campanhas da Avaaz.org. no Brasil, “algumas pessoas chegaram a dizer que a campanha Ficha Limpa foi a primeira grande mobilização popular por uma questão política desde o movimento dos caras-pintadas que pediram o impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello”.

O propósito da Lei Complementar nº 135, de 2010, foi alterar a Lei Complementar nº 64, de 1990, atendendo ao disposto no art. 14, § 9º, da Constituição Federal, que autoriza o legislador infraconstitucional a estabelecer novas hipóteses de inelegibilidade, visando proteger a probidade administrativa e a moralidade para exercício de mandato, considerada a vida pregressa do candidato.

Conforme já mencionado, a nova legislação derivou de um projeto de lei de iniciativa popular, conhecido como Ficha Limpa, que visou estabelecer novas hipóteses de inelegibilidade, com o objetivo de barrar a candidatura a cargos eletivos de candidatos que, segundo os critérios dispostos no novo diploma legal, não tivessem os requisitos morais necessários ao exercício do mandato político, em face de suas condutas pregressas desabonadoras e que, por isso, representariam um risco ao sistema representativo se não fossem afastados da disputa eleitoral.

Em resumo, as principais inovações trazidas pela Lei Complementar nº 135, de 2010, são:

1. Aumento no rol dos crimes elencados no art. 1º, I, e;

2. No que se refere à rejeição das contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas, a exigência de que a ação do agente seja dolosa, bem como a necessidade de anulação ou suspensão da decisão pelo Poder Judiciário, e não apenas do ajuizamento da ação judicial;

3. Inclusão da imposição da inelegibilidade para os que forem condenados por captação ilícita de sufrágio;

4. Previsão da inelegibilidade para os que forem excluídos do exercício da profissão, por decisão sancionatória do órgão profissional competente, em virtude de infração ético-profissional, dos que forem demitidos do serviço público em decorrência de processo administrativo ou judicial e para os magistrados e membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente;

5. Aplicação da inelegibilidade aos condenados por terem simulado a cessação do vínculo conjugal ou da união estável, para evitar a inelegibilidade em razão de parentesco;

6. Exclusão da incidência da lei que estabelece casos de inelegibilidade sobre os crimes culposos, os de menor potencial ofensivo, os de ação penal privada e a renúncia para fins de desincompatibilização;

7. Abolição da exigência do trânsito em julgado da decisão judicial para fins de inelegibilidade, bastando a existência de decisão proferida por órgão judicial colegiado a partir da edição da nova lei;

8. Estabelecimento da prioridade na tramitação dos processos que versarem sobre desvio ou sobre abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, vedada a alegação de acúmulo de serviço;

9. Possibilidade de suspensão cautelar da inelegibilidade por decisão emanada do órgão colegiado competente;

10. Aumento do prazo das inelegibilidades para oito anos.

Embora a questão já tenha sido discutida e definitivamente apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, que inclinou pela constitucionalidade da norma, ainda há na ordem jurídica atual muita controvérsia acerca de sua constitucionalidade.

Existe uma corrente doutrinária que, apoiada no princípio da presunção de inocência, sustenta a inconstitucionalidade da Lei Complementar nº 135, de 2010, porque considera que a inelegibilidade assume caráter sancionatório e que a ausência de previsão do trânsito em julgado da decisão constitui uma violação a direitos fundamentais.

Contudo, há outra corrente que defende a constitucionalidade do novo diploma legal. Asseveram estes que a Lei da Ficha Limpa visa impedir o acesso a cargos políticos de candidatos detentores de “ficha suja”, mas ainda não condenados definitivamente. Alegam, ainda, a ocorrência da impunidade, decorrente da demora no julgamento definitivo do processo e consideram que a aplicação do princípio da presunção de inocência restringe-se à seara penal e que os valores tutelados pelos princípios da moralidade e probidade administrativa seriam mais amplos do que a garantia da presunção de inocência, uma vez que resguardam toda a coletividade e, por esse motivo, teriam maior relevância no caso em tela.

Dessa forma, apesar de considerada a importância da garantia da presunção de inocência e que essa é uma conquista que não pode ser habitualmente flexibilizada, deve-se seguir o entendimento da Suprema Corte brasileira, que decidiu pela constitucionalidade da Lei Complementar nº 135, de 2010. Ademais, a presunção de inocência não é considerada uma garantia absoluta nem mesmo na seara penal, que permite a legitimidade das prisões provisórias.

 

Referências

CASTRO, Edson de Resende. Teoria e prática do direito eleitoral. 4. ed. Belo Horizonte: Mandamento, 2008.

CERQUEIRA, Thales Tácito Pontes Luz de Pádua. Ficha Limpa & questões constitucionais: direito eleitoral do inimigo (retroagir?). Estudos Eleitorais, Brasília, v. 5, n. 1, p. 65-75, jan./abr. 2010.

GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 5. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.

MELLO, Alessandra. TRE barra 16 por ficha suja. Estado de Minas, Belo Horizonte, 15 ago. 2014. 1º caderno, p. 2.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2011.

NIESS, Pedro Henrique Távora. Direitos políticos. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Edipro, 2000. 

REIS, Marlon Jacinto. Lei complementar nº 135 de 4 de junho 2010: interpretada por juristas e membros responsáveis pela iniciativa popular. São Paulo: Edipro, 2010.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

TANAKA, Graziela. Ativismo online na Ficha Limpa: a Internet está mudando a política. TI Especialistas Desenvolvendo Ideias, [s. l.], 1º jan. 2011. Disponível em: <http://www.tiespecialistas.com.br/2011/01/ativismo-online-na-ficha-limpa-a-internet-esta-mudando-a-politica>. Acesso em: 6 maio 2015.

TAVORA, Pedro Henrique. Direitos políticos: condições de elegibilidade e inelegibilidade. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2000.



1 Graduada em Direito pelo Instituto de Ensino Superior Presidente Tancredo de Almeida Neves. Pós-graduada em Direito Constitucional pela Faculdade Internacional Signorelli. Técnico judiciário do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais.