Voto biométrico como instrumento de fortalecimento do Estado democrático de direito

Dedo no leitor e urna biométrica ao fundo

Carla Panza Bretas1



Introdução: conceito de Estado democrático de direito
    
A Constituição da República Federativa do Brasil afirma, logo no seu primeiro artigo, que a República Federativa do Brasil constitui-se em um Estado democrático de direito.  Tal expressão, que pode passar despercebida por olhos leigos, merece reconhecimento e destaque, pois a sua inserção no texto constitucional decorreu de um penoso processo histórico que conseguiu consolidar as liberdades individuais e o poder de participação popular nas decisões políticas nacionais.

Portanto, é importante ressaltar que a qualificação do Estado brasileiro como democrático e de direito denota duas qualidades distintas, mas complementares, que formam uma estrutura sólida e eficaz na organização política e social do nosso Estado. 

Assim, em breve síntese, aproveitando o conceito apontado por Duverger quando citado por Alexandre de Moraes2, democracia pode ser definida como o “regime em que os governantes são escolhidos pelos governados por intermédio de eleições honestas e livres”. Esse conceito também pode ser encontrado no parágrafo único do art. 1º da Constituição da República Federativa do Brasil, que afirma que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”, bem como no art. 14, que proclama que “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I – plebiscito; II – referendo; III – iniciativa popular”. 

Por outro lado, o Estado de direito pode ser definido como aquele em que há supremacia da lei, ou seja, sujeição do Estado às leis. No entanto, a expressão “lei” deve ser interpretada em seu sentido amplo, compreendendo todas as espécies normativas tais como a própria Constituição, as leis em sentido restrito (editadas pelo Poder Legislativo), decretos, resoluções, portarias, etc. Dentro desse sentido amplo de lei, deve-se, ainda, compreender a necessidade de hierarquização normativa segundo a visão kelseniana de hierarquia das normas, ou seja, não basta a submissão do Estado às leis em sentido restrito.  É necessário que, antes de tudo, o Estado sujeite-se à Constituição e que esta não seja contrariada por nenhuma outra norma de inferior hierarquia.

Entrelaçando-se esses dois conceitos, alcançamos a visão moderna do Estado constitucional, no qual não basta a existência de um Estado de direito, sendo necessário que esse Estado também seja democrático: o exercício do poder somente é legitimado pela vontade popular.  

A fraude na identificação do eleitor

A fraude no processo eleitoral remonta à época da Primeira República (1889-1930), antes mesmo da criação da Justiça Eleitoral no Brasil (1932). Relatos históricos narram o voto de cabresto nos “currais” eleitorais da época do coronelismo e a fraude na apuração do resultado da eleição conhecida como eleição “a bico de pena”. Quanto a essa última, conforme reconhecido por José Antônio Dias Toffoli3, “o método era simples: terminada a votação, havia um acréscimo do número de votantes, sempre no intuito de fraudar o resultado da votação”.

Ocorre que, mesmo depois da criação da Justiça Eleitoral, esta não ficou imune a outros tipos de fraudes como as urnas grávidas, em que eram computados mais votos do que votantes; o mapismo, que era a inversão dos resultados lançados nos boletins de apuração; o preenchimento do voto em branco4  e a fraude na identificação do eleitor. 

Em contrapartida, com o passar dos anos, houve o amadurecimento das instituições democráticas e a evolução tecnológica, que permitiu à Justiça Eleitoral desenvolver o voto eletrônico. Com ele, o sistema eleitoral foi aperfeiçoado, pois suprimiu o processo de preenchimento manual da cédula e dos boletins, eliminando “a interpretação, sempre subjetiva, do voto assinalado de forma pouco clara”5.

Ocorre que, mesmo após o advento do voto eletrônico, a falsa identificação do eleitor continua sendo constatada como uma prática de difícil eliminação. Nela, “profissionais” do voto, também conhecidos popularmente como “fósforos”, votam em nome de outros eleitores, tendo em vista a ausência de fotografia no atual título de eleitor.

Debruçando-se mais nesse tema, Toffoli6 afirma que “a possibilidade de fraude sob essa modalidade é de extrema gravidade, pois atinge o próprio exercício do sufrágio, comprometendo a segurança do voto”. Não é por outro motivo que essa conduta é capitulada como crime eleitoral com pena de reclusão de até três anos, conforme o art. 309 da Lei nº 4.737/1965 (Código Eleitoral).

É nesse cenário que a Justiça Eleitoral vem atuando incisivamente no combate à violação do direito ao voto, utilizando-se de vários instrumentos, como a exigência de apresentação de um documento oficial com foto no ato da votação, bem como investindo na tecnologia de identificação biométrica do eleitor.

Conforme informações prestadas pelo Tribunal Superior Eleitoral em sua página na Internet7, “todo sistema biométrico é preparado para reconhecer, verificar ou identificar uma pessoa que foi previamente cadastrada”. Nesse processo de identificação, é confirmada a identidade do indivíduo e comparada a sua impressão digital com o banco de dados registrado. 

É importante lembrar que o sistema biométrico não é uma novidade criada pela Justiça Eleitoral. Ao contrário, essa tecnologia já é conhecida, testada e aprovada com segurança pela Polícia Federal na emissão de passaporte e por outros órgãos como os Detrans e as secretarias de Segurança Pública de vários estados.

No âmbito eleitoral, a primeira eleição com identificação biométrica dos eleitores ocorreu com sucesso no ano de 2008, nos municípios de Fátima do Sul/MS, Colorado do Oeste/RO e São João Batista/SC. Após esse primeiro teste, dezenas de outros municípios também foram estruturados e autorizados a implantar o processo biométrico, aumentando a credibilidade da Justiça Eleitoral.

Sem dúvida, a utilização de tal ferramenta fortalece o Estado democrático de direito na medida em que o direito ao voto, que deve ser secreto e personalíssimo, recebe maior proteção contra esbulho por terceiros.  Nesse processo, acautela-se que somente aquele eleitor que tem as suas digitais cadastradas pela Justiça Eleitoral alcançará com êxito a finalização do voto eletrônico. “Isso significa a garantia da personalidade individual do eleitor por características próprias com o uso da tecnologia moderna”8.

Conclusão
    
Em linhas conclusivas, a Justiça Eleitoral brasileira, demonstrando maturidade no seu desenvolvimento, consolida o Estado democrático de direito ao assegurar a inviolabilidade do direito ao voto pelo processo de identificação biométrica do eleitor. Com ele, temos a garantia de que a vontade popular será respeitada nas urnas e de que a democracia será fortalecida no nosso país.  



1 Pós-graduada em Direito Público pela Associação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.  Atualmente, é analista judiciário do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná. Foi advogada, subsecretária de Administração do município de Macaé/RJ e assessora jurídica do mesmo município.
 
2 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 28. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 6.

3 TOFFOLI, José Antonio Dias. Breves considerações sobre a fraude ao Direito Eleitoral.  Revista Brasileira de Direito Eleitoral – RBDE. Belo Horizonte, ano 1, n. 1, p. 45-61, jul./dez. 2009, p. 48.

4 MELLO, Marco Aurélio de. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/biblioteca/PastasMinistros/MarcoAurelio/ArtigosJornais/778271.pdf> Acesso em: 6 mar. 2013.

5 MELLO, Marco Aurélio de. Op. cit.

6 Op. cit., p. 51.

7 Disponível em: <http://www.tse.jus.br/eleicoes/biometria-e-urna-eletronica/biometria-1> Acesso em: 18 fev. 2013.

8 RAMAYANA, Marcos.  Comentários sobre a reforma eleitoral: Lei nº 12.034/2009, Emenda Constitucional nº 58/2009, Lei nº 12.016/2009.  Niterói: Impetus, 2010, p. 98.