Pluralidade de filiações partidárias: análise crítica acerca da (in)aplicabilidade da Lei nº 12.891/2013 às eleições gerais de 2014

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Eduardo Henrique Lolli1

 

Sempre que vem à tona uma alteração legislativa em matéria eleitoral, surge a inquietante indagação – seguida de amplo debate acadêmico, doutrinário e jurisprudencial – acerca da aplicabilidade ou não da reforma ao pleito eleitoral imediatamente seguinte, visto que o legislador nacional tem o péssimo hábito de modificar a legislação a menos de um ano das eleições.

A discussão gira em torno, basicamente, da incidência ou não do art. 16 da Constituição Federal de 1988, que consagra o denominado princípio da anualidade da Lei Eleitoral, segundo o qual “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”.

Embora ainda se esteja longe de haver um conceito preciso e único para processo eleitoral – categoria que sempre dividiu os especialistas e os próprios tribunais –, existe uma relativa concordância acerca de sua essência, qual seja, evitar a mudança abrupta das regras do jogo quando já iniciado, de forma a impedir a manipulação do processo político e a criação de regras casuísticas tendentes a afetar a igualdade de chances e a expectativa de inalterabilidade repentina do sistema eleitoral até então vigente.

Prevaleceu por muito tempo, na doutrina eleitoralista, a concepção de que o processo eleitoral teria início com as convenções partidárias, realizadas de 10 a 30 de junho do ano eleitoral, momento em que os pré-candidatos concorrem com seus pares dentro do próprio partido; ou em 5 de julho do ano eleitoral, prazo para o registro de candidaturas.

Contudo, essas posições desconsideram a complexidade do processo eleitoral, visto que esse fenômeno deve ser visto de forma mais ampla, de modo a contemplar vários outros eventos que, conquanto ocorram antes daqueles, exercem inegável influência sobre o processo político.

Nesse sentido, pertinentes as palavras do Ministro Gilmar Mendes, consignadas na ementa do Recurso Extraordinário nº 633.703/MG, ocasião na qual o Supremo Tribunal Federal afastou a aplicação da Lei Complementar nº 135/2010, ou Lei da Ficha Limpa, às eleições que ocorreriam naquele mesmo ano:

O PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE ELEITORAL COMO GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL ELEITORAL. O pleno exercício de direitos políticos por seus titulares (eleitores, candidatos e partidos) é assegurado pela Constituição por meio de um sistema de normas que conformam o que se poderia denominar de devido processo legal eleitoral. Na medida em que estabelecem as garantias fundamentais para a efetividade dos direitos políticos, essas regras também compõem o rol das normas denominadas cláusulas pétreas e, por isso, estão imunes a qualquer reforma que vise a aboli-las. O art. 16 da Constituição, ao submeter a alteração legal do processo eleitoral à regra da anualidade, constitui uma garantia fundamental para o pleno exercício de direitos políticos. Precedente: ADI 3.685, rel. Min. Ellen Gracie, julg. em 22.3.2006. A LC 135/2010 interferiu numa fase específica do processo eleitoral, qualificada na jurisprudência como a fase pré-eleitoral, que se inicia com a escolha e a apresentação das candidaturas pelos partidos políticos e vai até o registro das candidaturas na Justiça Eleitoral. Essa fase não pode ser delimitada temporalmente entre os dias 10 e 30 de junho, no qual ocorrem as convenções partidárias, pois o processo político de escolha de candidaturas é muito mais complexo e tem início com a própria filiação partidária do candidato, em outubro do ano anterior. A fase pré-eleitoral de que trata a jurisprudência desta Corte não coincide com as datas de realização das convenções partidárias. Ela começa muito antes, com a própria filiação partidária e a fixação de domicílio eleitoral dos candidatos, assim como o registro dos partidos no Tribunal Superior Eleitoral. A competição eleitoral se inicia exatamente um ano antes da data das eleições e, nesse interregno, o art. 16 da Constituição exige que qualquer modificação nas regras do jogo não terá eficácia imediata para o pleito em curso (grifou-se).

Diante dessa orientação da Suprema Corte, qualquer norma que venha a alterar o panorama político em relação às condições para o registro e lançamento de candidaturas afeta diretamente o processo eleitoral, na medida em que se revela capaz de incluir ou excluir este ou aquele candidato de concorrer a determinado pleito.

Nesse ínterim, considera-se que as alterações promovidas pela Lei nº 12.891/2013, ou Minirreforma Eleitoral, no tocante à disciplina da pluralidade de filiações partidárias pode, a depender do caso, ser inserida nesse contexto e afetar, sim, o processo eleitoral. Isso porque, segundo as novas regras, notadamente aquela constante do art. 22, parágrafo único, da Lei nº 9.096/1995, ou Lei dos Partidos Políticos, havendo mais de uma filiação partidária, deve ser cancelada a mais antiga e permanecer apenas a mais recente, ao contrário do regime anterior, que previa o cancelamento de ambas as filiações.

Assim, apesar de os tribunais regionais eleitorais estarem se orientando no sentido de que a nova legislação, nesse ponto, não implica alteração do processo eleitoral, essa posição deve ser vista com reservas, uma vez que a filiação partidária consiste em um dos pressupostos de elegibilidade, requisito que deve ser atendido pelo pretenso candidato ao menos um ano antes da data do pleito.

Dessa forma, uma lei que se proponha a alterar as consequências da pluralidade de filiações partidárias – como o fez a Lei nº 12.891/2013 – pode acarretar, conforme o caso, inegável influência sobre o processo eleitoral, já que uma pessoa que, nos termos da redação originária do art. 22, parágrafo único, da Lei nº 9.096/1995, não preencheria o requisito de elegibilidade relativo à regular filiação partidária poderia vir a preenchê-lo nos termos da nova legislação (elegibilidade pelo partido político de filiação mais recente).

Deve-se ressaltar que o fato de a nova lei ser mais benéfica ao eleitor não constitui critério para afastar o princípio da anualidade da norma eleitoral, visto que a Constituição Federal de 1988 apenas se refere a lei que altere o processo eleitoral: pouco importa que esta amplie ou restrinja direitos políticos.

Também não se está a falar em Direito Penal, no qual a lei sempre retroage em benefício do réu; nem em Direito Administrativo pura e simplesmente. Filiação partidária é matéria afeta ao Direito Eleitoral, o qual segue regras e princípios próprios, de forma que não se revela possível tomar emprestados indistintamente conceitos ou posições de outros ramos jurídicos, com outra base axiológica, para transmudar o sentido e o alcance do art. 16 da Constituição Federal de 1988.

Em suma, deve-se frisar que um dos objetivos mais evidentes dessa garantia constitucional é impedir que haja alteração no cenário de disputa e competitividade a menos de um ano das eleições. É isso que importa, não havendo razão para questionar a quem a nova regra beneficie ou prejudique.

Nesse contexto, a solução mais coerente, além de tecnicamente adequada, consiste em atribuir à Lei nº 12.891/2013 interpretação conforme os arts. 14 e 16 da Constituição Federal de 1988 e, por conseguinte, manter apenas a filiação mais recente dos eleitores envolvidos em pluralidade de filiações, com a ressalva de que estarão impossibilitados de concorrer a qualquer cargo eletivo nas eleições gerais de 2014 por não atenderem ao pressuposto de elegibilidade relativo à filiação partidária.

Portanto, considera-se que a novidade introduzida pela Lei nº 12.891/2012 no tocante à pluralidade de filiações partidárias deve ser analisada com cautela, de modo que sua incidência imediata ocorra apenas em relação à filiação partidária propriamente dita, mas sem constituir “carta branca” para que filiados que outrora não preencheriam a respectiva condição de elegibilidade possam disputar o pleito de 2014, o que representaria inegável deformação do processo eleitoral, justamente o que visa impedir o art. 16 da Constituição Federal de 1988.


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1 Analista judiciário do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (TRE-PR). Chefe de Cartório da 134ª Zona Eleitoral (Palmital/PR). Especialista em Jurisdição Federal pela Escola da Magistratura Federal de Santa Catarina e em Direito Tributário pela Universidade do Vale do Itajaí, instituição de ensino na qual obteve o grau de bacharel em Direito.