A inconstitucionalidade do aspecto pro tempore das coligações partidárias

Matheus Passos Silva1

 

A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, o Brasil passou a se autodesignar como Estado democrático de direito. Em outras palavras, o Estado brasileiro passou a “ouvir” a voz do povo, já que, conforme determina a Constituição, o povo é o detentor do poder político, sendo a sua vontade exercida de maneira direta ou por meio de representantes eleitos pelo próprio povo. Estão assim presentes claramente na Constituição os princípios da soberania popular e da representatividade, essenciais a uma democracia.

O processo de escolha desses representantes é feito segundo determinadas regras. Algumas constam na própria Constituição, enquanto outras estão previstas no Código Eleitoral brasileiro (Lei nº 4.737/1965) e na Lei das Eleições (Lei nº 9.504/1997). Nesse contexto, uma das principais regras é a de que os candidatos têm de estar filiados a partidos políticos, já que são essas as instituições responsáveis por representar o cidadão brasileiro no Poder Legislativo.

A exigência de vinculação do representante a um partido político se dá porque o Brasil adota, para a escolha dos representantes do Poder Legislativo – a Câmara dos Deputados federal, as assembleias legislativas estaduais e do Distrito Federal e as câmaras de vereadores municipais –, o sistema proporcional. Como o próprio nome indica, esse sistema busca estabelecer, no Legislativo, a proporcionalidade de ideias existentes na sociedade, de maneira que todas possam efetivamente estar presentes no órgão representativo da sociedade.

Assim, se 35% dos cidadãos apoiarem as ideias do partido A, 40% apoiarem as ideias do partido B e 25% apoiarem as ideias do partido C, o ideal de representação será aquele em que A tenha 35% do total de eleitos, B tenha 40% dos eleitos e C tenha 25% dos eleitos. É necessário ter em mente que, no sistema de representação proporcional, os votos dados pelos cidadãos são inicialmente distribuídos para os partidos políticos, e não diretamente aos candidatos – ou seja, o cidadão está primeiramente votando nos partidos, e não nos candidatos.

É importante destacar que o sistema eleitoral brasileiro tem uma característica específica: as coligações partidárias. A coligação partidária corresponde à união de dois ou mais partidos políticos com o objetivo de atingir o maior número possível de votos nas eleições. Assim, tomando-se o exemplo anterior, se os partidos lançassem seus candidatos de maneira individual, nenhum deles conseguiria maioria no Poder Legislativo; por sua vez, se o partido A fizesse uma coligação com o partido C, ambos, em conjunto, teriam a maioria dos representantes eleitos, o que lhes permitiria maior margem de manobra no exercício do poder político e da representação dos interesses de seus eleitores.

Além disso, é também necessário chamar a atenção para o fato de que o estabelecimento de uma maioria parlamentar no Poder Legislativo é importante para aquele que estiver no exercício do mandato no Poder Executivo. Em outras palavras, se um governo, seja de qual partido for, não tiver governabilidade, ou seja, não tiver o apoio do Legislativo, não conseguirá governar, isto é, não conseguirá exercer seu papel de representante da vontade popular, ferindo, em última análise, o princípio democrático que sustenta o Estado brasileiro. Portanto, as coligações se apresentam como um mecanismo necessário à governabilidade no Brasil, especialmente quando se verifica que o quadro partidário brasileiro é extremamente pulverizado, com 32 partidos políticos registrados perante o Tribunal Superior Eleitoral.

Ora, se as coligações têm validade jurídica e são até mesmo necessárias para a governabilidade, qual é o problema? O problema se apresenta quando se analisa a legislação eleitoral e se percebe que essa legislação define as coligações como tendo caráter pro tempore, isto é, as coligações são juridicamente limitadas no tempo. Isso significa que as coligações partidárias existem apenas durante um período específico, que é o período do processo eleitoral. Tal período ocorre durante os anos eleitorais e vai de junho a dezembro, coincidindo com dois marcos importantes no processo eleitoral: as convenções partidárias em junho e a diplomação dos eleitos em dezembro.

Assim, as coligações surgem durante o período das convenções partidárias, auxiliam na definição do quociente eleitoral – que é o número mínimo de votos para que um partido ou uma coligação tenha direito a uma vaga de deputado ou de vereador –, mas deixam de existir após o término da eleição e dos demais trâmites eleitorais que culminam com a diplomação dos eleitos.

Ora, se a coligação existe durante o período eleitoral, contribuindo para a eleição de inúmeros parlamentares, mas posteriormente deixa de existir, parece não haver dúvidas de que a representatividade popular é enfraquecida, já que o eleitor, que de maneira geral desconhece o funcionamento do sistema eleitoral proporcional, sente-se verdadeiramente perdido em termos eleitorais, sem saber a quem seu voto foi atribuído quando as coligações deixam de existir após as eleições.

É com base nesse raciocínio que se torna possível afirmar que o art. 6º da Lei das Eleições, bem como seus subsequentes parágrafos – que permitem a existência de coligações partidárias –, é inconstitucional. Deve-se entender por inconstitucional algum dispositivo legal que viola os preceitos constitucionais, seja do ponto de vista formal – quando o processo de criação do dispositivo legal infringe os procedimentos previstos para a sua formação –, seja do ponto de vista material – quando o conteúdo do dispositivo legal se apresenta contrário às regras e aos princípios previstos na Constituição.

Assim, é possível afirmar que tal artigo da Lei das Eleições é inconstitucional no seu sentido material, ou seja, ele fere os princípios da representação e da soberania popular expressamente previstos na Constituição.

Em primeiro lugar, fere-se o princípio da representação porque o cidadão vota no candidato X do partido C, mas, como esse partido está coligado com o partido A, ele – cidadão – vê o candidato Y do partido A ser eleito devido aos cálculos eleitorais previstos na legislação, que acabam realizando verdadeira transferência de votos de um candidato a outro. Portanto, o cidadão acaba não sendo representado como consequência das coligações.

Em segundo lugar, fere-se o princípio da soberania popular porque o cidadão vota conscientemente na coligação X, mas esta simplesmente deixa de existir após as eleições, de maneira que a vontade popular efetivamente deixa de ser concretizada – já que a vontade do povo, que no momento da eleição era ver a coligação X tendo o maior número possível de representantes, deixa de ser concretizada após o fim do período eleitoral simplesmente porque tal coligação não existe mais.

Uma possível solução para tal problema seria a criação de federações partidárias, o que basicamente corresponde à manutenção das coligações no período pós-eleitoral, ou seja, durante o exercício do mandato legislativo. Caso tal proposta viesse a ser aprovada, os princípios da representatividade e da soberania popular não mais seriam infringidos, já que a coligação existente no período eleitoral continuaria existindo após as eleições, o que garantiria que a vontade popular se concretizasse por meio da representatividade decorrente das eleições.



1 Bacharel e mestre em Ciência Política pela Universidade de Brasília. Doutorando em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Professor universitário na Faculdade Projeção, Brasília/DF.