Convocação para os trabalhos eleitorais e a escusa de consciência do art. 5º, VIII, da Constituição Federal

Theangelis Nunes Teixeira1

 
O presente artigo busca tecer breve análise sobre a possibilidade de o eleitor, convocado para os trabalhos eleitorais como mesário, recusar-se a realizar serviço eleitoral, alegando motivo de crença religiosa, nos termos do art. 5º, VIII, da Constituição Federal.

Primeiramente, é preciso destacar que a convocação para os trabalhos eleitorais na função de mesário está prevista no art. 120 do Código Eleitoral, sendo a mesa receptora de votos ou de justificativas composta, em regra, por um presidente, um primeiro e um segundo mesários, dois secretários e um suplente.

Uma vez regularmente convocado pelo juiz eleitoral, o membro da mesa receptora que faltar ou abandonar os trabalhos eleitorais fica sujeito às sanções administrativas previstas no art. 124 do Código Eleitoral, que são: multa ou, no caso de mesário servidor público, suspensão.

A obrigatoriedade do serviço eleitoral está expressa no art. 365 do Código Eleitoral, segundo o qual “o serviço eleitoral prefere a qualquer outro, é obrigatório e não interrompe o interstício de promoção dos funcionários para ele requisitado (grifou-se)”. 

A importância do serviço eleitoral é tamanha, que a recusa ou o abandono do serviço eleitoral sem justa causa constitui crime previsto no art. 344 do Código Eleitoral, muito embora, no caso de mesário faltoso, haja jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral que afasta a incidência desse artigo uma vez que já existem as sanções administrativas.2

Feitas essas considerações, certo é que o mesário dispõe de um prazo de cinco dias, a contar de sua nomeação, para apresentar sua recusa ao dever que lhe foi confiado, devendo a objeção estar fundada em motivos justos, a serem apreciados pelo juiz eleitoral, exceto se tais motivos surgirem depois desse prazo, conforme o art. 120, § 4º, do Código Eleitoral.

Constituiria, então, a justificativa fundada em crença religiosa, prevista no art. 5º, VIII, da Constituição Federal3, motivo justo para a dispensa do mesário dos trabalhos eleitorais?

A resposta a essa indagação passa necessariamente pela seguinte ponderação: o serviço eleitoral constitui ou não uma obrigação legal a todos imposta?

O Tribunal Superior Eleitoral já se manifestou sobre tal questão no julgamento da Petição nº 2.058/SP, que culminou na edição da Resolução-TSE nº 22.411/2006, ao entender que o interesse público do processo eleitoral se sobrepõe ao de grupos religiosos, salientando que o serviço público eleitoral é tarefa obrigatória aos cidadãos em geral.4

Mas é preciso não esquecer que a Constituição Federal consagrou a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença em seu art. 5º, VI e VIII, sendo proibido ao Estado adotar qualquer postura que fira as convicções e crenças do indivíduo, podendo este até se recusar a cumprir determinadas obrigações que contrariem sua fé, possibilidade chamada de “escusa ou objeção de consciência”.

A escusa ou objeção de consciência, entretanto, não é possível em se tratando de obrigações legais a todos imposta, como o serviço eleitoral. Nesse caso, segundo a Constituição Federal, ao recusar-se a cumprir obrigação legal de cunho geral, o indivíduo deve ter a possibilidade de cumprir uma prestação alternativa, compatível com suas convicções, fixada em lei e que não constitua penalidade. Caso se recuse a cumprir a obrigação legal e a prestação alternativa, aí sim, estará sujeito a restrição de direitos, como a suspensão dos direitos políticos5, nos termos do art. 15, IV, da Constituição Federal.

Do estudo do texto constitucional e segundo a doutrina jurídica a respeito, o art. 5º, VIII, da Constituição Federal, é norma constitucional de eficácia contida6 ou restringível, ou seja, o direito à escusa de consciência tem eficácia plena e aplicabilidade direta e imediata enquanto não sobrevier lei que fixar determinada prestação alternativa para a obrigação legal recusada (atuação restritiva).

Com efeito, com relação ao serviço eleitoral, embora seja obrigação legal destinada aos cidadãos em geral, não há prestação alternativa respectiva fixada em lei destinada àqueles que o recusem por motivo de convicção religiosa, razão pela qual, enquanto não existir lei fixando tal prestação alternativa, deve-se assegurar a plenitude do direito de escusa de consciência e a liberdade de crença, sendo dispensado o eleitor dos trabalhos eleitorais.



1 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia, com especialização em Direito Processual Civil. Técnico judiciário do TRE/SP e chefe do Cartório Eleitoral da 50ª Zona Eleitoral – Igarapava/SP.

2 Ac.-TSE no 21/1998: o não comparecimento para compor mesa receptora não caracteriza o crime previsto neste artigo, uma vez que prevista sanção administrativa no art. 124 deste código, sem ressalva da incidência da norma penal.

3 VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

4 O Tribunal Regional Eleitoral do Estado de São Paulo, por sua vez, em julgamento ocorrido na mesma época, entendeu de modo diverso e deferiu recurso cível interposto por eleitor, seguidor da religião judaica, para dispensá-lo da função de mesário, por entender que o serviço eleitoral não é obrigação legal a todos imposta, uma vez que o art. 120, § 2º, do Código Eleitoral, estabelece critérios de escolha dos mesários que “serão nomeados, de preferência entre os eleitores da própria seção, e, dentre estes, os diplomados em escola superior, os professores e os serventuários da Justiça.” – Recurso Cível nº 25.780.

5 Alguns doutrinadores defendem que, no caso em apreço, seria hipótese de perda dos direitos políticos, já que não há prazo determinado para o término da restrição nos direitos políticos do indivíduo.

6 Segundo leciona José Afonso da Silva, em sua obra Aplicabilidade das normas constitucionais: “Normas de eficácia contida, portanto, são aquelas que o legislador constituinte regulou suficientemente os interesses relativos a determinada matéria, mas deixou margem à atuação restritiva por parte da competência discricionária do poder público, nos termos que a lei estabelecer ou nos termos dos conceitos gerais nelas enunciados” (SILVA, 2001, p. 115).