Fósforo

Alguns dicionários apontam o fósforo como um indivíduo “metediço”, intruso” ou como “homem sem mérito”. E nenhuma referência fazem ao significado que lhe deram a crônica política e o debate parlamentar do Império e da 1ª República: o do falso eleitor, que vota por outro. Como Rui explicava, em seu discurso em 1879: “Fósforo é tanto o não qualificado que usurpa o nome, o lugar, o direito do qualificado, como o realmente qualificado, sem direito a sê-lo; em suma, tudo quanto vota ilegitimamente.” (Barbosa, Rui, discurso de 10.7.1879, in: Obras completas, v. VI, t. I, Rio de Janeiro , MEC, 1943, p. 266)

O livro de Francisco Belisário Soares de Souza, Sistema eleitoral no Império, de 1872, (Brasília: Senado Federal, 1979) mostra quanto o fósforo ou o invisível representava um papel notável nas eleições de então. No Senado e na Câmara do 2° Reinado, muita vez se aludiu às “influências fosfóricas.“

Na 1ª República, em áreas mais propícias aos vícios eleitorais, como o Rio Grande do Sul, os fósforos se multiplicaram. Uma disposição da Lei n° 58, editada em janeiro de 1897 por Júlio de Castilhos, determinava não caber às mesas eleitorais “entrar na apreciação da identidade da pessoa do eleitor, qualquer que seja o caso.” Isso permitia, segundo o comentário de Mem de Sá,” a qualquer preto retinto votar com o título de um teuto chamado Hans Bernstein.” (Sá, Mem de. A politização do Rio Grande, Porto Alegre, Tabajara, 1973, p. 27) Ou que, segundo Rubens Maciel, os mortos participassem involuntariamente da fraude; e “duplamente, não só porque votavam, mas porque reincidiam no voto.” (In: Simpósio sobre a Revolução de 30, Porto Alegre: UFRGS, 1983, p. 148) Em livro recente, sobre as revoluções no Rio Grande do Sul, José do Patrocínio Motta explica: “Eram chamados fósforos pela oposição, os eleitores do governo, verdadeiro contingente eleitoral, que votavam em qualquer urna e por mais de uma vez. Eram chamados fósforos porque riscavam em qualquer urna, esta assemelhada com uma caixa de fósforo. Fósforo era uma expressão pejorativa da época.” (Motta, José do Patrocínio. República Fratricida, Porto Alegre: Martins Livreiro-Editor, 1989, p. 82) Mas era denominação, como vimos, de todas as épocas, e a designar não somente aqueles que votavam com o governo.

Uma das primeiras leis da 1ª República, que estabelecia o processo eleitoral para as eleições de federais, parecia ser permissiva com os fósforos: a lei n° 35, de 36 de janeiro de 1892 determinava, por seu art. 43,§ 4°, que “o eleitor não poderá ser admitido a votar sem apresentar o seu título, não podendo, em caso algum, exibido este, ser-lhe recusado o voto, nem tomado em separado...” O texto foi repetido pelo art. 7°§ 4°, das Instruções trazidas pelo Decreto n° 1.668, de 7 de fevereiro de 1894. Mas a Lei n° 1269, de 15 de novembro de 1904 (v. Lei de Rosa e Silva) veio possibilitar, à mesa eleitoral, se tivesse “razões fundadas para suspeitar da identidade do eleitor”, tomar seu voto em separado, retendo o título exibido e o enviando, com a cédula, à junta apuradora do distrito (art. 74,§ 3°)

Uma curiosa tentativa de eliminação do fósforo, no Brasil, foi a trazida pela Lei n° 2.550, de 25 de julho de 1955, com a tentativa – seguindo o exemplo de outros países – de marcar o dedo do eleitor com tinta indelével. Dizia o seu art. 36: “Depositado o voto na urna, o eleitor, logo em seguida, introduzirá o dedo mínimo da mão esquerda em um recipiente que contenha tinta fornecida pelo Tribunal Superior Eleitoral ou pelos Tribunais Regionais Eleitorais. § 1° - Se o eleitor se encontrar impossibilitado de utilizar o dedo mínimo da mão esquerda para o fim previsto neste artigo, seja em virtude de lesão física temporária ou permanente, seja por qualquer outro motivo, deverá ser assinalado, pela mesma forma, em lugar visível, de preferência no dedo mínimo da mão direita. § 2° - A tinta a que se refere este artigo deverá possuir características tais que, aderindo à pele, somente desapareça após 12 (doze) horas no mínimo. § 3° - Não será admitido a votar o eleitor que, no ato de votação, apresente vestígio da tinta de que trata este artigo e seus parágrafos.”

Representação dirigida ao Congresso pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral mostrou, porém, a inexequibilidade da medida, ante a constatação da inexistência de tinta com as características exigidas (Costa, Edgard. A legislação eleitoral brasileira. Rio de Janeiro: Dept° de Imprensa Nacional, 1964, p. 270) O art. 36 e seus parágrafos, da Lei 2.250/55 foram, então, não decorrido um mês de sua edição, revogados pelo art. 7° da Lei n° 2.582, de 20 de agosto de 1955.

Um romance de Mário de Palmério, retratando a deformada realidade eleitoral de um pequeno município de Minas Gerais, diz como havia ali, com a conivência do escrivão, uma inundação de eleitores-fantasmas: “O processo era simples. Nos últimos dias do alistamento, o partido reunia as certidões de idade remetidas pelos cartórios de paz e que sobravam, entregando-os aos cabos eleitorais de confiança. Cada um deles se incumbia de fazer porção de requerimentos, tudo com a própria letra, assinando-os com o nome constante da certidão de idade. E davam entrada às petições e assinavam o recibo e os títulos respectivos. Um eleitor ficava, assim, de posse dos vários títulos, reproduzindo-os em vários eleitores. Compareciam nas sessões, votavam, assinavam as folhas de votação, e não havia jeito de apanhar a fraude: a assinatura conferia com a do título.”

Palmério faz referência a dois desses invisíveis, Calistinho Corneta, um “fósforo de segurança” e Doquinha de Joca Bento. Deste último, “contavam horrores”. Na penúltima eleição, “o tipo pintara e bordara”: “Votou, a primeira vez, barbudo, representando o velho Didico, morto havia mais de um ano; fez a barba, deixando o bigode, e foi para outra sessão votar em nome de um tal de Carmelita, sumido desde meses; tirou o bigode e, com a cara mais limpa e lavada deste mundo, preencheu a falta de outro eleitor; e dizem ainda que votou mais uma vez, de cabelo oxigenado e cortado à escovinha, substituindo um rapazinho alemoado que viera trabalhar, por uns tempos, na montagem da usina elétrica”. (Palmério, Mário. Vila dos Confins, Rio de Janeiro, José Olympio, 1956, p. 320 e 340)

Referência

FÓSFORO. In: PORTO, Walter Costa. Dicionário do voto. Brasília: UnB, 2000. p. 211-214.

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